Estávamos todos em minha casa quando tudo começou. Eles jantam por lá uma vez por semana e a Débora foi a primeira a chegar. “E se fizéssemos o Caminho Português de Santiago?“, lancei eu. Para surpresa minha (e dela), o desafio foi aceite sem reticências. O mote estava lançado.
Quando o Pedro e a Rute chegaram, revelaram-se também caminhantes inesperados. “A sério? Sempre quis fazer isso. E já tirei esses dias de férias. ‘Bora”. Sempre prático, o Pedro. “Se vocês vão, eu não fico aqui a fazer nada”. Afinal, o Caminho é comunidade, não é assim Rute? Estava a grupeta montada, o compromisso assumido. Dentro de um par de meses, íamos andar. Ainda não sabíamos bem de onde, mas o destino final seria Santiago de Compostela.
O motivo que nos leva a percorrer o Caminho de Santiago é pessoal. Não existe um motivo certo ou errado, adequado ou não, existe o nosso motivo, aquele que é o verdadeiro para nós!
Espaço Jacobeus
Caminho Português de Santiago: o percurso completo
Os peregrinos fazem o Caminho de Santiago desde o século IX, havendo rotas de vários pontos da Europa até à Catedral de Santiago de Compostela, onde estão as relíquias do apóstolo Santiago Maior. Depois de séculos de declínio, a partir de meados da década de 1980 o Caminho de Santiago começou a ganhar uma nova popularidade, entre crentes e não crentes. O Caminho Francês é o mais concorrido, mas o Caminho Português de Santiago é o segundo itinerário mais utilizado pelos caminhantes.
O Caminho Português de Santiago (ou Via Lusitana ou Caminho Central Português) é o percurso mais tradicional que parte de Portugal, e pode ser feito desde o Algarve. Oficialmente, inicia-se em em Lisboa (634km), mas a maioria dos peregrinos começa no Porto (240km) ou em Valença do Minho (120km).
Leiam aqui o Manual das Etapas do Caminho Central Português desde Lisboa. Aqui poderão consultar as etapas para planearem o vosso Caminho e o número de dias que precisarão para chegar a Santiago de Compostela.
Caminho Português de Santiago: desde Valença
Algumas semanas antes da data acordada, decidimos começar o Caminho Português de Santiago em Valença. Seriam 120km, portanto planeámos 6 dias para fazer cerca de 20km por dia. E a nossa preparação não foi muito além desta operação aritmética. Pedimos a Credencial do Peregrino no Espaço Jacobeus, detalhámos os albergues onde iríamos dormir, e fizemos a mochila. Estávamos prontos.
Ao contrário de muitos peregrinos, não nos preparámos fisicamente. As nossas pernas e pés viriam a sofrer as consequências, mas sem um pouco de dor e superação, o que é o Caminho?
Etapa 1: Valença – O Porrinõ (24km)
Chegámos a Valença no dia anterior ao fim da tarde e aproveitámos a tarde para explorar a cidade. Depois de irmos conhecer a fortaleza e a cidade velha dentro de muralhas, regressámos ao Albergue de Valença. Relativamente fora do centro histórico, o albergue fica junto ao quartel de bombeiros. As instalações são recentes e a cozinha está equipada com frigorífico, fogão e forno. Comprámos qualquer coisa para jantar no supermercado e fomos recuperar energias. No dia seguinte começava a caminhada.
Erguemo-nos pelas 6h00 (7h00 em Espanha) e começámos a andar uma hora e meia depois. Atrasámo-nos com os banhos e o pequeno-almoço e saímos já bem depois da hora planeada. Um grande erro de principiantes!
A nossa primeira paragem foi logo depois de Valença, em Tui. Atravessámos a ponte sobre o rio Minho e fomos diretos ao centro histórico, para obtermos o nosso primeiro carimbo na Credencial do Peregrino, num café junto à Catedral de Santa María de Tuy.
Depois, entrámos pela floresta, encontrando ruas de alcatrão e terra batida, rodeadas de grandes árvores que nos faziam sombra. Foi uma bela forma de iniciar o nosso Caminho, principalmente depois de atravessar a ponte da Veiga, quando se entra pelo Vale do Louro.
Descansámos a meio desta etapa numa esplanada improvisada num terraço de uma vivenda (haveríamos de encontrar muitas pelo Caminho) e ao final do dia aproximávamo-nos de O Porriño. Aqui, desviámo-nos do Caminho oficial (que passa pelo Polígono Industrial – uma recta de alcatrão medonha, sem pingo de sombra) e fizemos um Caminho Alternativo pela floresta. É mais longo, mas muito mais bonito.
Depois de uma recta numa estrada de alcatrão, entrámos em O Porriño pelo parque florestal da cidade, junto ao rio. Não há que enganar, o albergue fica no final do parque e está bem indicado.
Chegámos a O Porriño pelas 14h20. O albergue abria às 15h00, portanto ficámos na fila para garantirmos o nosso lugar. Saímos para almoçar pelas 15h30 e voltámos rapidamente para o albergue para descansar.
Etapa 2: O Porriño – Redondela (18km)
Decidimos acordar bem mais cedo para chegar a Redondela antes da hora de maior calor. Acordámos às 5h30 e às 6h30 começámos a caminhar. O sol ainda não tinha nascido.
Caminhámos sem parar até Mós, uma aldeia bonita, a 9km de Redondela. Estava praticamente ainda tudo fechado e continuámos depois de um lanche bem merecido. Nesta segunda etapa do Caminho Português de Santiago, passámos por muitas estradas secundárias, atravessando várias aldeias.
Chegámos a Redondela ainda não era meio-dia. O nosso melhor tempo no Caminho e a etapa mais fácil. Foi a mais curta, ainda não estávamos cansados e conseguimos fugir ao calor. Contudo, não nos valeu de muito porque os restaurantes ainda estavam fechados e tivemos de esperar para almoçar. Lá entrámos no primeiro restaurante da vila a abrir e tivemos tudo a que tínhamos direito.
Em Redondela, acabámos por não ficar no albergue público, porque era bastante pequeno e os peregrinos faziam fila à porta até às 14h00 à espera que abrisse. Fomos para um albergue privado, pagámos mais 5 euros por pessoa e não nos arrependemos. Camas e lençóis lavados, silêncio e lavagem de roupa gratuita.
Pela tarde, fomos à ria de Redondela, cuja praia fluvial fica muito perto do centro da cidade. Num dia atípico de calor, até a água – normalmente fria – estava quente.
Etapa 3: Redondela – Pontevedra (21km)
Mais um dia a acordar às 5h30 e a sair às 6h30. Esta etapa foi mais difícil em termos de terreno, com algumas subidas íngremes. Mas também a mais bonita de todas, já que fomos sempre por bosques e caminhos de terra batida.
Nos primeiros quilómetros da etapa, subimos e avistamos a ria de Redondela lá em baixo. É talvez a paisagem mais bela do percurso, ainda para mais com a luz do amanhecer. Continuámos e a meio da manhã, começou a chover torrencialmente. Viemos equipados com os impermeáveis e não perdemos o ritmo. Mais à frente, fizemos uma paragem junto à ponte medieval de Pontesampaio para descansar um pouco, à espera que a fúria da chuva acalmasse.
Retomámos o caminho e encontrámos uma antiga calçada, pela qual trepámos até Cacheiro. A partir desta área montanhosa começámos a encontrar muitos peregrinos, já que aqui se junta o Caminho que vem de Vigo, os mínimos olímpicos para o Caminho de Santiago. Encontrámos também muitos peregrinos alemães de trajes tradicionais que vêm de longe, muito além dos mínimos olímpicos (País Basco, Alpes, ou mesmo Alemanha). É aqui que o Caminho se torna sinónimo de comunidade.
Chegámos a Pontevedra pelas 13h00. Fomos diretos para o albergue público, mesmo à entrada da cidade. Depois de assegurarmos o nosso lugar, almoçámos e sentimo-nos com energia para explorar o centro da cidade, a mais bonita de todas do Caminho Português de Santiago.
Etapa 4: Pontevedra – Caldas de Reis (26km)
Acordámos às 5h30 mas só conseguimos sair pelas 7h00. Sendo esta uma das etapas mais longas do nosso trajeto, devíamos ter saído mais cedo. Foi um erro e viríamos a pagá-lo ao final do dia.
Ao longo do dia atravessámos muitas vinhas e bosques. Entre Cerponzons e San Mamede há um belo troço pelo bosque. No final da etapa, o Caminho entra pela estrada, onde as sombras são nulas. Um deserto de asfalto. O cansaço atacou-nos de rompante, em sintonia com o sol implacável, e arrastámo-nos até ao final desta etapa. Ainda haveríamos de passar por um caminho entre vinhas, mas o calor não nos deixou desfrutar mais.
Chegámos a Caldas de Reis pelas 14h30 e não quisemos saber do albergue. Estávamos exaustos e entrámos no primeiro restaurante que vimos. Só nos conseguimos levantar pelas 17h00. Claro que a essa hora os albergues estavam já todos ocupados. Encontrámos um hotel com um quarto para 4 pessoas e não hesitámos. E, para nossa redenção, tinha piscina. Não tivemos energia para conhecer as termas quentes da cidade, muito populares entre os peregrinos. Fica para a próxima!
Etapa 5: Caldas de Reis – Padrón (23km)
Voltámos à disciplina. Acordamos às 5h30, saímos às 6h30. A um ritmo mais lento, com um grande cansaço acumulado. O dia anterior tinha sido muito duro.
Esta etapa é bastante bonita, o caminho segue pela floresta, com bastante sombra e entre riachos. Mas o cansaço do corpo já não nos deixou apreciar em pleno o que os olhos viam.
Chegámos a Padrón pelas 13h00 e havia apenas um quarto de 4 pessoas livre no albergue público. Parece que estava à nossa espera. À tarde reunimos as últimas energias para um almoço tardio com os muito afamados pimentos padrón e uma caña.
Etapa 6: Padrón Santiago de Compostela (28km)
Acordámos às 5h30, mas só conseguimos sair de Padrón quase às 7h30. Erro fatal para a última e mais longa das etapas do nosso Caminho Português de Santiago.
Neste último dia caminhámos lentamente e encontrámos algumas subidas. Esta é a etapa menos bonita do Caminho. Com a aproximação à cidade de Santiago de Compostela, seguimos por estradas e abandonámos definitivamente as paisagens idílicas dos bosques galegos. Houve queixumes durante grande parte do caminho, e parámos demasiadas vezes.
À medida que nos aproximávamos de Santiago, eram inúmeros os peregrinos que nos ultrapassavam. Tínhamos a certeza de que íamos ser os últimos a chegar. “Que se dane, o que importa é chegar!” Entrámos pela cidade exaustos, desesperados e sedentos. Cada passo já se tornava num tormento, mas quanto mais devagar andássemos, pior seria. Finalmente quase às 17h00 chegámos à Catedral de Santiago de Compostela. Fim de Caminho!
E apesar do momento de catarse e euforia, a chegada é muito pouco espiritual. A Catedral está em obras, e nenhum marco assinala o fim de caminho. Os peregrinos estão estendidos no chão, na Praza do Obradoiro. O Centro do Peregrino fica ainda a uns 300 metros e há uma fila imensa para receber a Compostela. Um painel eletrónico vai chamando os peregrinos na fila. Parece uma repartição das Finanças, mas com mais suor e cãibras.
Mas tudo isto pouco nos afeta. A chegada pouco nos importa. O mais importante é tudo o que vivemos naqueles seis dias. É o sentimento de superação que nos inunda não só quando vimos a catedral ao fundo da rua, mas ao final de cada dia de Caminho. Porque todos os dias nos surpreendíamos com a nossa resiliência e descobríamos que tínhamos mais força do que sabíamos. É a liberdade arrebatadora que há em carregar às costas tudo o que necessitamos. E a simples felicidade que nisso há. Sentimo-nos despojados e plenos porque precisamos de tão pouco e afinal é tudo tão simples.
O que importa é mesmo o Caminho. É andar.
Os quilómetros referidos têm por base o relógio com que caminhámos e incluem todos os trajetos que fizemos a pé durante o Caminho, incluindo idas ao supermercado e restaurantes. Consegui inspirar-vos para o Caminho Português de Santiago. Leiam também o artigo sobre as dicas sobre o Caminho Português. Gostaram do artigo? Podem seguir o Facebook do Contramapa, o Instagram e o Twitter.
Tenho andado a pensar fazer mas, provavelmente, faria o caminho da costa. Farto-me de ver caminhantes a passar em Leça da Palmeira… :). Talvez no próximo ano! Vou guardar o artigo para consultar depois.
Eu agora também quero fazer o da Costa, fiquei mesmo a gostar disto!
Façam pelos passadiços e pelas ecovias
Parabenizo a todos os peregrinos que conseguem fazer o caminho de Santiago. Além de lindo deve ser emocionante!
bjs
Que maravilhoso isso, eu gostaria muito de fazer um dia, mas não sei se consigo, sou muito preguiçoso. Tenho orgulho de quem faz (e bastante orgulho), pois deve ser uma lição de vida a cada passo!
Um resumo bem conseguido, muito pessoal e que ilustra todos os sentimentos vividos do Caminho.
Parabéns Diana.
A Associação Espaço Jacobeus agradece esta partilha.
Ultreia e Suseia, pois o Caminho continua.
Um abraço.
Muito obrigada pelas palavras amigas!
Olá Diana! para mim é um prazer ler um artigo sobre o caminho de Santiago. Nunca fiz a peregrinação a pé, mas mas já fiz de bicicleta a partir de Braga e posso dizer que é um linda experiência. Gostei muito das fotos e do relato. Abraço!
Vinte quilômetros por dia? Haja perna! Canso só de pensar… Mas estou de acordo que O Caminho é uma experiência para guardar para a vida inteira e morro de vontade de fazer também!
Que grande caminhada mesmo…. confesso que ainda não “me bateu” a vontade de fazer esse caminho. Mas só tenho visto boas razões para visitar todas essas terras por onde passaste. Lindissimas paisagens mesmo!!!
Já pensei em fazer o Caminho Português de Santiago algumas vezes, mas ainda não calhou. Caminhadas são muito a minha onda, mas sei que antes de ir farei alguma preparação 😛 Mas agora que estou a pensar nisso, quando vou de férias, 20 quilómetros por dia é bastante normal… Não tenho é a mochila sempre às costas, um pormenor importante!
O Caminho parece mesmo bonito. Para a próxima, vocês têm é de ver se se despacham mais depressa de manhã 😛 Ao ler este teu relato, fiquei ainda com mais vontade de meter pernas ao caminho.
Acho que desde Valença, ou mesmo do Porto, não vais ter grandes problemas, tu estás habituada a estas coisas! Nós ainda sofremos um bocadinho, mas fomos sem preparação nenhuma!
Talvez o francês possa ser a próxima aventura?
Estás nos planos, sim, 😛
Bom Caminho. Ultreia
Olá Diana, PARABÉNS!
Sou fã da natureza, apaixonado e viciado no caminho, e ler este texto fez.me recordar nostálgicamente o meu primeiro caminho. Fácil ficar dependente!
Parabéns pelo testemunho bonito e Bon Camiño 🙂
Obrigada Filipe 😀
O caminho temos que ser nós a fazer. É nunca pode acabar em santiago. Pra quem faz o caminho é chega a Santiago só aí é que vai começar o verdadeiro cominho.
Acabamos de chegar de fazer o caminho desde Valença com os filhos e um amigo deles ( 13 e 16 anos). Fizemos as mesmas etapas , tentando sair sempre ás 6 da manhã por causa do calor. Só na penultima etapa resolvemos almoçar em Padron e fazer mais 7 km até Cruces de modo ao último dia ficar com uma etapa mais curta. Valeu a pena pois chegamos a Santiago por volta das 12,30. Foi top. Recomendo e adorei fazer em família. Já estamos a pensar no proximo.
Ainda bem que tiveram uma experiência tão boa! Também quero repetir em breve!
Parabéns pelo artigo.
Vou sair no próximo dia 1 de Setembro de Valença. Quero tentar fazer menos 1 dia do que vocês fizeram, fazendo 2 etapas num só dia, mas veremos se o corpo aguenta.
Depois deixo aqui o testemunho 🙂
Caso alguém se queira juntar a mim fica o meu e-mail.
cmr.barros@gmai.com
Olá!
Obrigada pelo artigo.
Estou a pensar fazer o Caminho, mas morro de vertigens e queria saber se tem de se passar algum sítio alto nestas etapas.
Obrigada!
Olá, gostei bastante do seu artigo. Estou planejando minha caminhada para 2020. Qual época do ano pensas que é melhor para fazer este caminho? Que trages devo levar?
Olá!
Recomendam os albergues onde ficaram?
Podem disponibilizar o nome deles?
Estou a planear fazer o mesmo percurso depois do Natal:)
Obrigado!!
Olá estamos a pensar em ir na próxima primavera fazer o caminho…com partida de comboio do Porto até Valença e fazer o caminho de Santiago de Valença a Santiago. Alguém quer se juntar a nós é bem vindo.
ah verdade tb agradeço dicas para que esta caminha seja bem sucedida.
deixo meu email:
asoares.cmo.rrh@gmail.com
Bom dia,
Muito obrigado por transmitirem-nos a vossa experiencia, eu proprio estou a pensar em ir fazer este mesmo caminho mas sozinho, por isso gostaria de vos perguntar se acham necessario levar algum tipo de GPS, pois como vou sozinho tenho algum receio que o caminho não esteja bem identificado.
Obrigado
Olá Gonçalo!
Não é necessário qualquer GPS. O percurso está muito bem assinalado, basta seguir as vieiras que se encontram em todos os cruzamento/ sempre que haja dúvida. No nosso grupo, nunca nenhum de nós tinha feito nada parecido e não nos perdemos!
Boa sorte 🙂
Olá. Fiz o caminho agora em setembro, a partir do Porto. Mas identifiquei-me com estas descrições após Valença 🙂 até porque fiz as mesmas 6 etapas desde Valença. Fiquei com vontade de repetir. O vosso grupo não voltou a Santiago ?