De tampoes nos ouvidos, mascara para os olhos e almofada de pescoco, sentado numa carruagem de comboio, finalmente anoitecia e eu entregava-me ao sono. Quando mais tarde abri os olhos e vi com toda a nitidez as cores e as formas da floresta que a velocidade do comboio fazia desaparecer do lado de la do vidro, pensei: ��ja estamos a chegar a Abisko �� afinal as 19 horas de viagem desde Estocolmo passaram-se rapido.��

Primeiro confuso e depois embaracado pela conclusao precipitada �� traido pelo meu proprio inconsciente ainda submerso no sono �� pus-me a observar os numeros desfocados no ecra do smartphone: 02:37. E ao meu lado, o N., meu companheiro de viagem, exclamava: como se nestas latitudes cantassem as badaladas do meio dia no Tropico de Cancer.

E se algumas horas antes estavamos ainda na capital do Reino da Suecia �� dentro de um supermercado comprando viveres para uma semana: nozes e frutos secos, barras energeticas, massa, latas de atum, sopas e guisados em po �� agora estavamos ali, como fazendo forca para que o sono voltasse, sentados no interior do movimento que nos aproximava do Circulo Polar Artico, da Laponia sueca, de Abisko, do inicio do kungsleden, do Caminho do Rei.

Os 105 kms entre Abisko e Nikkaluokta

O kungsleden e um trilho que se estende ao longo de cerca de 440 quilometros desde Abisko, a norte, a Hemavan, a sul. A parte mais popular e, contudo, aquela mais a norte, talvez por ja fazer parte do Circulo Polar Artico ou por oferecer as paisagens mais deslumbrantes. Foi essa pequena parte que, na primeira semana de agosto, e com inicio em Abisko, eu e o meu amigo N. decidimos percorrer. O percurso termina depois num pequeno desvio de 19 quilometros ate Nikkaluokta, o que perfaz um total de 105 quilometros.

Artico

Durante a caminhada, que fizemos em apenas 5 dias �� as pernas alongadas do meu N. impuseram um ritmo que nao permitiu o relaxamento ��, fomos recebidos nao apenas por uma paisagem deslumbrante, mas brutal num sentido literal. Estavamos envolvidos por um tipo de natureza selvagem, extrema, cuja beleza e violencia eram as duas faces da mesma moeda, inseparaveis quase por principio.

Comecamos em Abisko imediatamente apos o nosso primeiro passo sonolento para fora do comboio. A primeira parte do caminho ate Abiskojaure (15 quilometros) �� onde dormimos a primeira noite numa das muitas pousadas espalhadas pelo enorme trilho �� e a parte mais intimista. O caminho e sobretudo envolvido por uma floresta de arvores baixas acompanhadas pelo caudal do rio Abiskojokk.

artico

Em Abiskojaure, como em todas as pousadas espalhadas pelo caminho, esperava-nos uma sauna, onde os caminhantes se acumulavam, como vieram a este mundo dos pes a cabeca, nao apenas para se aquecerem mas para deixarem que os musculos das pernas pudessem recuperar o vigor perdido. Depois saiamos da pequena cabana de madeira e saltavamos para dentro do rio ou lago mais proximo. Este processo, que se realizava todas as noites, parecia ser o verdadeiro ritual do caminhante do kungsleden. Nao era apenas o momento de recuperacao das forcas fisicas e morais, mas o momento que nos unia, onde reencontravamos os varios caminhantes �� cada um com seus habitos �� na comunhao do caminho.

A partir do segundo dia, que nos levou de Abiskojaure a Alesjaura, o kungsleden passou a dar-nos uma imagem poderosa das montanhas suaves com seus topos brancos, num vale que se abria abruptamente sobre os nossos pes. Esse foi um dia de choque, de contemplacao total da paisagem que cada vez mais nos consumia e convidava a afastar-nos da civilizacao. Essa sensacao de isolamento era ainda mais aprofundada pelo facto de a nao haverrede de telefone e de nao existir ligacao a internet em nenhuma pousada ate chegar a Kebnekaise. Nao fossem as tabuas de madeira que por vezes nos ajudavam a caminhar ao longo do trilho por cima de rochas ou de pantanos impossiveis �� e que nos faziam lembrar da civilizacao �� o caminho do Rei dava-nos precisamente a sensacao de um alheamento total daquilo que era para nos o nosso mundo.

artico

��Nas caminhadas que se estendem por varios dias, durante grandes expedicoes, tudo se inverte. O ��la fora' deixa de ser uma transicao e torna-se um elemento que oferece estabilidade. Tudo se inverte: vamos de pousada a pousada, de abrigo a abrigo, e aquilo que muda e o infinitamente variavel ��espaco interior'.��

Estas sao as palavras de Frederic Gros em A Philosophy of Walking, um livro no qual nunca parei de pensar durante a caminhada. Eu deixava que o meu corpo se transportasse a si mesmo na expectativa constante de ser surpreendido, e de se cansar para que ao final do dia, deitado na tenda pudesse olhar para tras e ver que a efemeridade do caminho que deixei se ira repetir amanha numa, apesar de tudo, feliz transicao.

artico

O trilho, principalmente a partir do terceiro dia �� entre Alesjaura e Sälkta (25 kms) �� comecava a ser vivido como um espelho das palavras de Gros: uma forma de ver o mundo a transformar-se em redor e a sentir a inversao das transicoes. O normal era o caminhar. A excecao era a casa. Ou melhor: a casa era o caminhar.

Ao final do dia, depois de avistarmos a pousada ao longe - tal oasis do Artico - montavamos a nossa tenda nas suas imediacoes. Deitavamo-nos todos as noites as 9 horas e acordavamos por volta das seis da manha. No entanto, mesmo se nos levantassemos as duas da manha para obedecer a um comando muito proprio da natureza, nunca nos vimos envolvidos pela noite. Na verdade, a noite nao existia.

artico

O quarto dia de caminhada foi o mais longo (26 kms) e o mentalmente mais dificil. Chovia e e eu mal podia averiguar atraves das lentes dos meus oculos conquistadas pela agua, se as rochas onde colocava os pes na subida para Kebnekaise me pregariam uma rasteira.

O almoco, que nesse dia �� em vez de preparamos ao ar livre como costumavamos fazer �� fizemos na pousada de Singi, foi um dos momentos mais especiais da viagem. As pernas doiam-me e a chuva la fora fazia da pequena cabana de madeira onde estavamos a cozinhar o imovel mais confortavel onde ja alguma vez tinha estado. Foi tambem onde se reuniram muitos dos outros caminhantes com quem nos tinhamos cruzamos e com quem mantinhamos conversas por vezes corriqueiras outra vezes profundas, mas sem nunca nos apresentarmos formalmente.

Depois chegamos a Kebnekaise, com o corpo a ser transportado pela determinacao que se impunha ao cansaco, quica a dor. Ai seria a nossa ultima noite na tenda, a nossa ultima sauna, a nossa ultima refeicao a base de massa e atum.

artico

No dia seguinte, e sem que parasse de chover, chegavamos ao fim da nossa intensa caminhada de cinco dias. Se durante a viagem eu sabia aproximar-me de um lugar cada vez mais longe, de uma zona limitrofe da Europa, provavelmente mais do que qualquer outra, naqueles ultimos 19 quilometros antes de chegar a Nikkaluokta, eu senti a fatalidade inevitavel das obrigacoes mundanas impondo-se sobre a minha melancolia.

Ao longe, no final dessa etapa rodeada por arvores e submersa numa chuva premente e frustrante, comecamos a ver as formas de veiculos motorizados e a fachada do edificio que marcava a transicao, nao apenas o fim da nossa caminhada, mas o regresso a uma outra forma de existir sobre as pernas.

Geracao sentada: moralismo para umas ferias bipedes

Talvez possamos dizer, sem sermos imprecisos, que antes da geracao do digital ou da informacao, somos a geracao sentada. Ao contrario destas longas caminhadas, nas quais os abrigos sao as interrupcoes da jornada, na vida as caminhadas sao as transicoes entre cadeiras, esses nossos tao estimados abrigos.

A vida acontece sentada: na cadeira do escritorio, no sofa da sala, no banco do carro, do aviao ou do comboio, na cadeira do restaurante.

A ironia e que o nosso modo de locomocao mais antigo (e mais obvio) �� as pernas �� e aquele que geralmente mais negligenciamos nas cadeiras do quotidiano.

Tirar ferias para fazer uma caminhada ensinou-me que, alem de todas os estimulos oferecidos ao olhar e aos pensamentos, foi talvez a clarividencia do saber-me verdadeiramente bipede, e ainda a possibilidade de poder experimentar o Artico na sua forma mais pura, numa procura constante por animais selvagens - viados vimos apenas uma vez ao longe - e pela imaginacao mergulhada no olhar deslumbrado por vales rochosos e pantanosos no sope de montanhas milenares.

artico

Este artigo pertence a serie Palavra Puxa Palavra, as cronicas do Contramapa escritas por viajantes convidados. Se gostaram de artigo, podem seguir o Facebook do Contramapa, o Instagram e o Twitter.

 

 

Joao Guilhoto

As raizes sao em Lamego, mas ha muito que as deixou para tras. Aos 17 anos mudou-se para Lisboa e aos 24 para Frankfurt. Aos 28 deixou tudo e rumou a Asia. Mas voltou. Escritor publicado no Brasil, tem tambem uma grande paixao pelas viagens e pela fotografia. Podem conhecer o site pessoal dele aqui.

0replies

Leave a Reply

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe uma resposta

O seu endereco de email nao sera publicado.