Tirando o facto de quase nos ter encaminhado para a morte, o Ivo foi a unica pessoa simpatica que conheci na Bulgaria. Um dia, quando acordamos, estava a preparar-nos panquecas para o pequeno-almoco e eu nem queria acreditar. Como era possivel ele ser exactamente da mesma nacionalidade que a senhora no guiche da estacao de comboios? De facto, foi com ela que a ma experiencia com os bulgaros comecou: quando, depois de uma excelente performance de mimica, nos olhou nos olhos e enxotou com as maos. Nao queria dizer-nos onde apanhavamos o tram nº9 e tivemos que ir de taxi ate ao hostel. Ficou barato – convertido dava uns 2�� – por isso nao nos importamos.

Foi la, no hostel, que conhecemos o Ivo, que geria o espaco em conjunto com a irma. Recebeu-nos e tratou-nos muito melhor do que estavamos a ficar habituados naquele pais, por isso confiamos cegamente quando nos disse que nao podiamos ir embora da Bulgaria sem antes conhecermos Veliko Tarnovo.

veliko bulgaria

Chamou-nos um taxi – daqueles seguros – porque, segundo ele, tinhamos sido completamente roubados pelo taxista que nos levou da estacao ate ao hostel. Disse-nos onde apanhar o autocarro, quanto tempo demorava a viagem, o que deviamos ver na vila e a que horas deviamos regressar para nao perdermos o comboio de Sofia para Bucareste. Ivo a ser Ivo, isto e, incansavel.

E, de facto, Veliko Tarnovo e uma pequena e amorosa vila. Situada num vale, as casas cobrem as encostas, encavalitadas umas em cima das outras como se nao soubessem viver de outra forma que nao juntas. Passei umas boas horas a vaguear pelas ruas estreitas e sinuosas, que fazem lembrar uma aldeia antiga perdida no meio de Portugal. Tanto que perdemos conta de onde estavamos e nao nos orientamos quanto ao autocarro de regresso a Sofia.

veliko bulgaria

Quando conto esta parte da historia e normal que as pessoas se riam de mim, mas tambem nao vai ser agora que a vou omitir. A determinada altura, no meio da confusao na paragem do autocarro e assustada com o facto de estar a ficar cada vez mais escuro, sai-me com um ��eu acho que sei ler cirilico��. Podia ser uma piada de mau gosto – normalmente, em momentos de stress, saem-me coisas assim -, mas nao. O que eu queria dizer era que conseguia distinguir a palavra ��Sofia�� em caracteres cirilicos e que vinha ali um autocarro com essas letras escritas.

Entramos e rapidamente percebemos uma coisa curiosa: na Bulgaria (ou pelo menos naquele autocarro) nao se pode falar directamente com o motorista, caso contrario somos obrigados a pagar uma multa. Toda a comunicacao e feita com uma especie de ��pica��, no nosso caso uma senhora nos seus 50 anos, pequena e muito rezingona. Ou assim acho, ja que nao percebi patavina do que ela disse.

veliko bulgaria

Obrigou-nos a ocupar os dois lugares no autocarro em que tinhamos colocado as nossas mochilas e, quando as pousamos no chao, obrigou-nos tambem a leva-las ao colo. Tentamos falar com ela, perceber se estavamos no caminho certo e perguntar-lhe qual era a nossa paragem, mas tornou-se completamente impossivel. Primeiro, porque apenas o condutor falava ingles, mas nos estavamos proibidos de lhe dirigir a palavra. Depois porque, a cada tentativa nossa, ela gesticulava de forma cada vez mais agressiva.

Tudo culminou no momento em que nos expulsou – melhor, em que nos ejectou! – do autocarro. So faltava ter-nos pegado pelo colarinho e atirado as mochilas para ser uma cena digna de filme. E foi num filme que o nosso final de dia se tornou, quando percebemos que estavamos literalmente no meio do nada. Parados numa estrada sem qualquer iluminacao, vimos o autocarro a afastar-se e tinhamos a certeza de que aquilo nao era Sofia.

veliko bulgaria

Pronto, era ali. Era ali que morriamos. A minha avo bem me tinha dito que um inter-rail pela Europa de Leste era capaz de nao ser assim muito boa ideia, mas eu achei que era capaz e agora estava a beira de uma estrada isolada e, muito possivelmente, a beira da morte tambem. Tinhamos andado uns 20 minutos de autocarro, por isso nao fazia sentido nenhum voltar para tras a pe, mas tambem nao sabiamos onde ia dar o ��para a frente�� e acabamos por ficar parados enquanto tentavamos racionalizar.

Ate que vimos uma luz bem la ao fundo, vinda de uma estrada perpendicular a nossa. Seguir a luz ao fundo do tunel nem sempre e boa ideia (nao dizem que vemos uma luz quando estamos prestes a morrer?), mas tambem ja estavamos convencidos do nosso destino e la fomos. A nossa volta, aos poucos, comecavam a surgir predios abandonados e pessoas com um aspecto duvidoso.

La estava ela, ao fundo. Imponente, apesar de velhinha e em mau estado. Uma estacao de comboios. Afinal a Senhora Pica so queria mostrar-nos o caminho certo e nos a achar que nos queria abandonar algures para nao a chatearmos com as nossas perguntas em ingles. Percebemos que se tratava da estacao de Gorna Oryahovitsa, justamente a meio caminho entre Sofia e Bucareste.

veliko bulgaria

Nao havia ninguem na estacao, excepto alguns sem-abrigo que dormiam onde e quando podiam – enquanto os segurancas, que passavam de hora a hora, nao os espicacavam para acordarem e sairem dali. Quando olhamos para o placard com indicacoes sobre os comboios, vimos uns caracteres estranhos junto ao nosso.

��Entao e agora, nao les cirilico?��. Eu sabia que ia ouvir isto, mas tinha a tecnologia do meu lado. Sim, porque Gorna Oryahovitsa pode ser uma das estacoes de comboios mais decrepitas que vi na vida, mas havia wi-fi gratis. Instalei o alfabeto cirilico no telemovel, fui ao Google tradutor e percebi que estavamos tramados.

O nosso comboio estava claramente atrasado, so chegaria por volta da 1h da manha, e aquele sitio nao tinha sequer uma vending machine com chocolates. A sugestao do Ivo pode nao nos ter levado a morte no meio do nada, mas, tal era a fome, mais umas horas e iamos desta para melhor.

Este artigo pertence a serie Palavra Puxa Palavra, as cronicas do Contramapa escritas por viajantes convidados.

 

Rita da Nova

Nao e o curso de jornalismo. Nao e o trabalho como estratega de publicidade. Nao e a vontade de ir jantar fora todos os dias. Nao e o amor pelas duas gatas que tem. Nao e a inquietacao que sente se passa um mes sem viajar. Nao e a velocidade a que devora livros. Nem sequer e o seu blog sobre comida e viagens. Nao. O que realmente define Rita da Nova e a sua enorme e inabalavel paixao por historias, tenham elas que formato tiverem. Tudo o que ela faz e apenas uma maneira de viver com, dentro e perto delas.

1reply

Leave a Reply

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe uma resposta

O seu endereco de email nao sera publicado.