Iamos a meio do voo com destino a Toquio quando tive um mau pressagio. Sonolenta, desvio os olhos da comedia romantica do meu ecra, aconchego-me na manta e espreito o passageiro da frente. E nao e que a 40.000 pes de altitude, podemos ver a CNN? Ainda me estava a questionar se a emissao seria em directo, quando uma noticia me fez despertar rapidamente: os Estados Unidos tinham acabado de bombardear Shayrat, na Siria. Numa resposta a utilizacao de armas quimicas por parte do governo sirio, a administracao Trump lancou 59 misseis. 9 civis teriam perdido a vida nesta retaliacao, incluindo 4 criancas.

Nao soube mais nada. Que mais havia a saber? Tentei dormir o resto do voo e so me voltei a lembrar da guerra na segunda semana de viagem pelo Japao.

Tinhamos acabado de chegar a Hiroshima e chovia intensamente. Iamos a caminho do nosso hostel enquanto a noite caia. Molhados ate aos ossos, cansados e carregados com as nossas mochilas, vislumbramos pela primeira vez o Memorial da Paz que se encontra no centro da cidade. Entretanto, a chuva parou e pudemos absorver aquele momento em toda a sua brutalidade.

Numa extrema ponta do parque no centro da cidade, ergue-se a cupula Genbaku. Localizada a 150 metros do hipocentro da explosao da bomba atomica, este edificio manteve-se quase intacto, quando tudo o resto foi praticamente reduzido a cinzas e escombros. Quando as obras de reconstrucao da cidade se iniciaram, o domo manteve-se e ninguem foi capaz de demoli-lo. Qual cadaver da guerra, o Parque do Memorial da Paz de Hiroshima foi construido a sua volta, mantendo sempre presente a memoria viva da pior guerra possivel.

A uns 300 metros de distancia, no memorial funebre, existe uma chama que nunca se apaga, em memoria das vitimas. Nos primeiros 2 a 4 meses depois dos bombardeamentos, terao morrido entre 90.000 e 146.000 pessoas em Hiroshima. Hoje, a chama da paz mantem-se acesa ate que a ameaca de aniquilacao nuclear deixe de existir no planeta Terra. E aqui arrepio-me. As flores frescas aqui colocadas sao um alerta de que a historia nao e preterito perfeito. Terao sido aqui postas ha 1 dia, 2 dias? Talvez 1 semana? Mais de 70 anos passaram e a ferida continua em carne viva. E mais do que um luto, e um trauma colectivo.

Como forma de mastigar o passado infernal, os japonesas tem ate uma palavra para os sobreviventes das bombas atomicas: hibakusha. Existiram cerca de 650.000 hibakusha registados, sendo que mais de 150.000 continuam vivos nos dias de hoje. Todos os anos, nos aniversarios dos lancamentos das bombas, os memoriais funebres em Hiroshima e Nagasaki atualizam a listagem de hibakusha falecidos.

Numa prova tipica de dupla resiliencia e ironia niponicas, junto ao memorial funebre existe uma homenagem a Tsutomu Yamaguchi, uma das 165 vitimas que sofreram radiacoes das duas bombas atomicas. Tsutomu estava em Hiroshima numa viagem de trabalho a 6 de agosto de 1945, quando a primeira bomba atomica detonou. Ferido, conseguiu encontrar uma linha de comboio em funcionamento e voltou para a sua cidade, Nagasaki. Apesar dos ferimentos, voltou ao trabalho no dia 9 de agosto e foi quando explicava ao seu incredulo chefe o que lhe tinha acontecido que a segunda bomba atomica detonou. Tsumotu, mais uma vez, sobreviveu e viria a falecer apenas aos 93 anos de idade.

“Descansai em paz, pois o erro jamais se repetira”.

E esta a inscricao no memorial funebre de Hiroshima, junto a chama da paz. Vem-me a memoria a noticia que vi durante o voo. Poucas horas depois, e aqui, no meio desta cidade com um passado tao amargo que sei da Coreia do Norte. As noticias alertam-nos de que as hostilidades se agravam. Kim Jong Un lanca mais um teste balistico, atingindo o mar da zona economica exclusiva japonesa. Os Estados Unidos prometem guerra, a Coreia do Norte tambem. Uma frota naval americana e japonesa poe-se em marcha para as aguas coreanas. Kim Jong Un anuncia que os testes nucleares vao continuar. Mike Pence anuncia que era da paciencia terminou.

Vamos jantar. O dono do restaurante parece nao ter ainda 40 anos. Faco contas de cabeca: os pais dele, teriam ja nascido em 1945? E os avos, que idade teriam? Estariam em Hiroshima quando tudo aconteceu? Sera que esta pessoa que nos serve de sorriso rasgado tem familiares que faleceram a 6 de agosto de 1945? Ou que sofreram durante anos? Quantos? Quao proximos?

Enquanto voltamos para o hostel pelas ruas de Hiroshima, nao consigo parar de olhar para os rostos dos mais velhos e fazer as mesmas perguntas. Que traumas, que lagrimas guardam aqueles sorrisos?

Quando chegamos ao nosso alojamento recebo um alerta no telemovel. Uma mensagem enviada pelo governo em japones. Receio o pior e dirijo-me a recepcao. Afinal, e um aviso sobre um deslizamento de terras na provincia de Hiroshima, alertando a populacao de que devera evitar determinadas regioes.

Respiro fundo, mas mesmo assim, saio de Hiroshima no dia seguinte com o coracao pesado. Chegamos a Quioto, mais uma vez ao cair da noite, e ha uma manifestacao contra a guerra nas ruas principais da cidade. Um dos manifestantes explica-nos que o primeiro-ministro Shinz� Abe esta a implementar politicas militaristas. Por aqui, tambem se receia o pior. Os japoneses nao querem outra grande guerra. O mundo nao pode ter outra grande guerra.

Seguimos a nossa viagem e num qualquer momento de introspeccao vem-me a memoria o poema de Jose Saramago.

Fala do Velho do Restelo Ao Astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miseria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E tambem da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei la bem que desejo
De mais alto que nos, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaco e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde nao chove.

Mas o mundo, astronauta, e boa mesa
Onde come, brincando, so a fome,
So a fome, astronauta, so a fome,
E sao brinquedos as bombas de napalme.

Chamo-me Diana.Gosto de ler, gosto de escrever e tenho ganho o gosto de viajar. Decidi juntar as historias acumuladas neste espaco e chamei-lhe Contramapa. Porque nas contracapas dos meus livros existe sempre um mapa, um sitio onde ir, um local a descobrir. Aqui podem conhecer as minhas historias e viagens em livro aberto.

14replies
  1. rui batista
    rui batistasays:

    “Descansai em paz, pois o erro jamais se repetira��. Infelizmente, TODOS os dias se repete. Diana, parabens pelo texto fantastico. Gostei MUITO. Mesmo! E ja te falei em dom para a escrita? ��� Tal como a chuva, tambem te penetrou ate aos ossos…

    Responder
  2. Francisco Manuel Fernandes Agostinho
    Francisco Manuel Fernandes Agostinhosays:

    Que excelente texto Diana, nada que me surpreenda pois ja me habituaste a uma escrita que adoro. Aquela frase…pois infelizmente eu nao acredito muito que o erro nao se repetira, o ser Humano tem uma tendencia estranha para a estupidez. Que se viva um dia de cada vez, e rodearmo-nos dos que acreditamos que sao bons, nada mais importa. Mais uma vez, es um dos meus favoritos Contramapa, vais longe!

    Responder
  3. Gabriela Torrezani
    Gabriela Torrezanisays:

    Que lindo e forte o seu texto. fiquei super emocionada. Quero muito visitar Hiroshima, mas so de pensar tambem ja fico com o coracao pesado… e o poema no final, que forte. complemento com uma musica do Chico Buarque, Calice, composto na pior fase da ditadura militar brasileira:
    “Como beber dessa bebida amarga
    Tragar a dor, engolir a labuta
    Mesmo calada a boca, resta o peito
    Silencio na cidade nao se escuta
    De que me vale ser filho da santa
    Melhor seria ser filho da outra
    Outra realidade menos morta
    Tanta mentira, tanta forca bruta

    Como e dificil acordar calado
    Se na calada da noite eu me dano
    Quero lancar um grito desumano
    Que e uma maneira de ser escutado
    Esse silencio todo me atordoa
    Atordoado eu permaneco atento
    Na arquibancada pra a qualquer momento
    Ver emergir o monstro da lagoa

    De muito gorda a porca ja nao anda
    De muito usada a faca ja nao corta
    Como e dificil, pai, abrir a porta
    Essa palavra presa na garganta
    Esse pileque homerico no mundo
    De que adianta ter boa vontade
    Mesmo calado o peito, resta a cuca
    Dos bebados do centro da cidade

    Talvez o mundo nao seja pequeno
    Nem seja a vida um fato consumado
    Quero inventar o meu proprio pecado
    Quero morrer do meu proprio veneno
    Quero perder de vez tua cabeca
    Minha cabeca perder teu juizo
    Quero cheirar fumaca de oleo diesel
    Me embriagar ate que alguem me esqueca

    Pai, afasta de mim esse calice de vinho tinto de sangue”

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  4. Ana
    Anasays:

    Que belissimo texto, Diana. Ha lugares perante os quais nao conseguimos (nem podemos) ficar indiferentes e este e um deles. Nunca ai estive e o local mais equiparavel que conheci foi Auschwitz. Lembro-me do aperto no estômago ao deparar-me com a tamanha barbaridade de que o Homem e capaz. Ao ler-te penso no quanto me revolta o facto de a historia persistir em repetir-se, de «nos» ver a voltar aos mesmos erros, constantemente. De qualquer modo, esse e um lugar que espero conhecer. Parabens pelo magnifico texto.

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  5. Paula
    Paulasays:

    Eu estive no Japao mas infelizmente nao pude ir ate Hiroshima, tenho muita vontade de ir justamente ver essa chama que nunca se apaga, obrigada pelo tocante post.

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  6. Paula Abud
    Paula Abudsays:

    Parabens pelo texto, Diana! E tocante demais! Nao consigo nem imaginar essa dor e essa tristeza que Hiroshima carrega ate hoje, deve ser triste olhar e pensar em tudo que aconteceu.
    Seu texto e uma bela reflexao!

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  7. Luis cordeiro
    Luis cordeirosays:

    Texto lindo e comovente, arrepiou-me tambem. Estou a organizar a minha viagem ao Japao para o ano e ainda nao sabia muito bem se incluiria hiroshima dada a distancia e o pouco tempo que tenho mas acho que as duvidas comecaram a dissipar-se.

    Responder

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