Don't mess with Melaka.
Malaca. Creio ter pronunciado esta palavra pela primeira vez como se saboreasse o mar. Estaria ainda inclinado sobre um mapa preparando os tres meses de viagem no continente asiatico. Malaca. Havia algo de salgado neste lexico. Talvez um reflexo de memoria involuntaria de uma aula de Historia perdida no inconsciente. Malaca. Uma palavra que sabia a mar e que, num dia chuvoso de Outubro, se transformava num aglomerado concreto de civilizacao.
O autocarro deixou-me atras de um hotel, onde eu nao fazia ilusoes de ficar. Caminhei, numa intermitencia de nuvens agora sossegadas, atraves de ruas sem passeio, saltando sobre fossas de agua abertas violentamente sob o ceu cinzento, como se a cidade estivesse em constante modo de aviso: aqui podes cair! Passei por entre varias arcadas, ornadas com lojas de portas escancaradas para as ruas onde circulavam carros e motas vagarosas, como se duvidassem. Cheirava a caril, gasolina, agua suja. A porta das lojas, as pessoas, muito quietas, pareciam ouvir com uma atencao estoica as ultimas gotas da descarga tropical. Ouviam-se, no entanto, rumores do regresso da chuva na inquietude das pocas. Apressei-me a chegar a pousada do Chua, que me recebeu com um sorriso.
Depois do check-in, Chua convidou-me a sentar a mesa da sua ampla cozinha. ��Quero explicar-te Malaca��. O seu rosto tenso repetia os mesmos movimentos de todos os dias: abrir um mapa, desenhar circulos com a caneta nos locais dignos de visita, como se ao indicar com aquele toque de tinta os edificios importantes me dissesse que eu ali seria mais feliz. Disse nomes para os quais eu ja me tinha preparado: Igreja de Sao Paulo, a Famosa, Museu do Mar, nomes que alias, ali tao longe, antecipavam ja esse encontro com o Passado, um encontro, por isso, renascido depois desses restos de memoria das aulas de Historia ou nesse sabor a mar na boca.
Quase poderia dizer que esses landmarks, residuos da memoria colectiva deixada pela presenca portuguesa na cidade de Malaca entre 1511 e 1641, serviram de preparacao para um confronto com a Historia. No Museu do Mar, pude ler que os portugueses nao foram os navegadores da ilha das Ninfas nem os poetas de aventuras maritimas. Era a mesma Historia, mas invertida. O que de um lado se revelava, do outro se escondia. A crueldade e negligencia governativa dos lusitanos em Malaca enviou esta cidade para uma disputa politica que passava bem alem da importancia desta cidade como entreposto comercial, tornando-se quase o centro de um orgulho colonial do Ocidente.
Depois dos portugueses vieram os holandeses e mais tarde os ingleses, so que Malaca ja perdia para Singapura. As pedras acastanhadas da Famosa, pareciam querer aproximar-se de mim, e apenas porque eu detinha um passaporte com um nome que nos unia: Portugal. Turistas fotografavam esses muros suportados pelo tempo para se servirem da memoria para assinalar a sua contemporaneidade: ��estou aqui hoje e a pedra ja estava aqui antes, sou actual de um Mundo antigo��, pareciam suspirar todos os cliques de interruptor da camara. Malaca estava ali, pequena, doce, repleta de opcoes para comer, entre cozinha chinesa e indiana; arquitectura cruzando Ocidente e Oriente, mas acima de tudo, Malaca servia propositos turisticos bem definidos: seduzia com legitimidade essas camaras.
Durante os dois primeiros dias ocupei-me das ruinas portuguesas e dos museus com um orgulho suspeito, comi em restaurantes indianos onde suei para cima de folhas de bananeira, entrei em lojas e cafes nas ruas do centro, e deslizei pelo mercado nocturno da Jonker Street em Chinatown, onde velhos se dedicavam ao karaoke como se tivessem desistido de tudo o resto. E ao final do dia la estava na sua pensao, o Chua, pedindo relatorio diario.
Ao terceiro e ultimo dia voltou a sensacao a sal na boca. O confronto com a Historia tornar-se-ia inesperado. E o que acontece quando as ruinas de pedra se transformam em Homem. Portuguese Settlement: tinha eu lido a partir de um resultado qualquer do Google. Chua tinha-mo confirmado: podes ir la, mas nao ha nada de interessante para ver, disse ele, nao ha ruinas. Estava enganado.
Durante uma hora, caminhei ao longo de uma estrada sem passeio, debaixo de nuvens que pareciam suster a sua queda enquanto eu me mantivesse ali. Aquelas eram paragens pouco visitadas. Os carros nao faziam cerimonia ao viajante: corriam afogueados e alguns caes vagueavam atraidos pelo cheiro de novos movimentos. Depois as placas: Portuguese Settlement.
Entrei no bairro e segui para a praca principal. Sim, sem predios a ruir, como avisou o Chua. Teria sido apenas um aglomerado banal de casas, nao fosse reconhecer sinais que se aproximavam pela sua verosimilhanca com uma realidade que eu carregava: Restoran de Lisbon, e uma imagem de um homem e uma mulher malaios vestidos a minhoto.
Fiquei algum tempo parado no meio da praca onde varios restaurantes com nomes portugueses pareciam empurrar-se uns aos outros. Era de tarde, dia de semana. Uns velhos estavam sentados debaixo de uma arvore fitando o estreito. Os restaurantes estavam desertos. A igreja da pequena congregacao catolica do bairro e o Portuguese Heritage Museum Melaka estavam fechados. Entao e isto, pensei, um eco subtil perpetuado por um grito que se calou no seculo XVII.
Um jovem que varria as folhas das arvores da frente de um restaurante perguntou-me em ingles se eu precisava de ajuda. Eu disse-lhe simplesmente: sou portugues e vim aqui por curiosidade. Estas a ver aqueles velhos debaixo da arvore?, perguntou ele afirmando, vai la ter com eles que eles falam a tua lingua. Fiquei espantado. Aproximei-me devagar, com medo da minha propria lingua falada por outras bocas, ainda desconhecendo a existencia do cristang, crioulo portugues falado por apenas cerca de cem pessoas.
Parecia que os velhos estavam a minha espera. Eram varios, mas um tomou a palavra: Cipriano Francis da Costa, musico reformado. Ele parecia ser aquele senao com mais aptidao para falar, pelo menos o que ainda tinha paciencia. Eu nao era o unico portugues que ali ia por curiosidade, ele anunciou. Ja se fizeram estudos sobre a nossa comunidade, continuava ele em cristang, que eu ouvia como se, por entre as palavras familiares e estranhas desse idioma raro, ouvisse timidos lamentos lancados pelo proprio tempo.
Outras pessoas iam-se juntando a conversa, novos e velhos. Muitos novos ja nao falam o cristang, disse-me o Cipriano, mas mantem as tradicoes: festejamos todos os eventos catolicos incluindo os Santos Populares e temos as nossas dancas e musicas que sao portuguesas. Muitos tem nome ainda portugues como eu, disse ele. A segunda metade da conversa foi feita em ingles. Ambos pareciamos de acordo em relacao a lentidao com que nos ouviamos. Talvez isso fosse uma das caracteristicas das ruinas: sera que as pudemos ouvir na totalidade, ou seja, que as podemos compreender? Nao serao todas as ruinas, mais uma vez, ecos?
Despedi-me deles e do sope daquela arvore, debrucada sobre o estreito com o mesmo nome da cidade e caminhei de volta a Malaca, sob ameaca das chuvas que insistiam em nao vir. Mais tarde o mercado da Jonker Street enchia-se de animacao e indiferenca para com a Historia.
No dia seguinte parti. Sai da pousada do Chua. Enquanto caminhava pelas ruas ate chegar ao taxi, olhava para tras, nao necessariamente para lancar um ultimo olhar a Malaca, porque nao se pode ver uma cidade quando ainda estamos dentro dela, mas talvez para me ver a mim proprio no reflexo de algum espelho e com isso pudesse sentir o verdadeiro valor do tempo. Prometi a mim proprio regressar, como sempre, e como fizeram muitos outros antes de mim. Mas esses deixaram pedras, uma lingua e vida.
Que loucura!! Como tem lugar nesse mundao ne? Nunca tinha ouvido falar! Muito sentimental teu relato, curti! ���
Ola Joao! Gostei muito deste texto e da forma como transmitiu a historia portuguesa em terras de alem-mar ;D
Principalmente gostei “Nao serao todas as ruinas, mais uma vez, ecos?”… fiquei a pensar tambem ��� Boas viagens!
Esse e um dos textos mais bacanas e inspiradores que ja li nos ultimos tempos por aqui, pelo mundo virtual. Fui transportada para dentro dele, caminhei pelas ruas, participei das descobertas, senti-me intima de lugares e memorias que nem sao minhas… Obrigada por esse conjunto de palavras que causaram tantos sentimentos!
Adorei ler o seu texto! Gostava muito de visitar, um dia, os lugares relacionados com a presenca Portuguesa na Asia… Malaca e um deles! ���
Lindo texto, pura inspiracao. Pude, atraves das palavras, transportar-me no tempo e no espaco, sentir o sabor do mar e ouvir o barulho do vento. Pude tambem sentir muita vontade de conhecer Malaka e desfrutar dos mesmos sentimentos.
Clau Bins
Que experiencia bacana! Adorei seu relato, e as fotos ficaram incriveis!
Oi, Joao!
Nunca tinha ouvido falar sobre Malaca tambem. Viajar tem disso, nos abrir oportunidades para novos conhecimentos! Muito interessante a sua forma de retratar a experiencia. ���
Texto gostoso demais! Me lembro, a epoca da universidade, sobre uma leitura aconselhada pelo prof. de Literatura Portuguesa: “O mundo que o portugues criou”. Seu texto me lembrou imediatamente dessa aula, sobre tantos cantinhos do mundo onde encontramos semelhancas com a nossa cultura e a nossa lingua.
E verdade! Portugal e um pais muito pequenino mas ja teve grande influencia e ainda existem muitas marcas que sobreviveram ate aos dias de hoje!
Malaca….. primeira vez que a ouco, assim como cristang (seria um dialeto ou uma comunidade?)!
Eu sempre achei muito curioso ouvir o portugues sendo pronunciado por outros povos e imagino a sua surpresa!
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Joao, adorei seu relato, alem de mostrar o lugar, foi possivel ter o sentimento de estar viajando tambem pela historia, Muito bom.